Desde que me mudei para Uberlândia em 2004, uma inquietação persiste: a percepção de que as relações de amizade, outrora pautadas por afinidades culturais e valores morais, transformaram-se em transações utilitárias. Em Brasília grande parte de minhas amizades eram feitas de uma conexão baseada em trocas desinteressadas — como debates sobre livros, saraus culturais ou simples companhia para assistir a um filme — hoje parece relegado a um passado idealizado, principalmente aqui em Uberlândia. Em seu lugar, impera uma dinâmica em que o "amigo" surge apenas quando há um interesse a ser atendido, seja profissional, social ou material. Esse fenômeno não apenas reflete uma mudança nas relações humanas, mas também ecoa dilemas éticos milenares, como o retratado no diálogo Críton, de Platão, e nos convida a questionar: o que restou da amizade autêntica?
A Amizade como moeda de troca
A observação de que as amizades modernas são frequentemente unilaterais ou movidas por interesses específicos não é isolada. Em Uberlândia, assim como em muitas cidades marcadas pelo ritmo acelerado da vida urbana, o tempo tornou-se um recurso escasso. As pessoas priorizam conexões que ofereçam retorno imediato: contatos profissionais, favores pontuais ou apoio em momentos de crise. Poucos investem em construir relações que demandem tempo para conversas profundas, análises conjuntas de obras artísticas ou simplesmente a presença despretensiosa. A gratuidade, essência da amizade clássica, é substituída pela lógica do networking — termo que, por si só, reduz laços afetivos a estratégias de ascensão social.
Críton e Sócrates: um espelho para nossas motivações
O diálogo Críton ilustra uma tensão atemporal. Quando
Críton, amigo rico de Sócrates, tenta libertá-lo da prisão antes da execução,
Sócrates recusa, argumentando que fugir seria trair seus princípios éticos. A
discussão filosófica tradicional concentra-se na justiça da decisão de
Sócrates, mas uma leitura mais provocativa questiona as intenções de Críton:
ele queria salvar Sócrates por lealdade ou para preservar sua própria
reputação, evitando a culpa por não ajudar um amigo?
A Crise da confiança e o vazio do utilitarismo
Se a amizade se reduz a transações, a confiança — alicerce
de qualquer relação significativa — é corroída. Quando suspeitamos que um gesto
amigável esconde uma agenda oculta, passamos a nos relacionar com reservas,
como em um jogo de xadrez social. O resultado é uma solidão paradoxal: cercados
de "contatos", carecemos de companheiros genuínos. Os saraus
culturais, espaços antes dedicados ao compartilhamento de ideias e afetos,
deram lugar a encontros superficiais, onde o que importa é "quem pode
oferecer o quê".
É possível resgatar a amizade autêntica?
Sócrates, ao escolher a morte em vez de fugir, priorizou a
coerência com seus valores acima de conveniências. Sua decisão nos lembra que a
amizade verdadeira exige mais do que reciprocidade de interesses: demanda
alinhamento ético e disposição para aceitar o outro em sua integridade, mesmo
quando isso conflita com nossos desejos. Na modernidade, talvez a resistência à
amizade utilitária esteja justamente em resgatar espaços de convivência não
produtiva — como clubs de leitura, grupos de cinema ou círculos de discussão
filosófica —, onde o objetivo seja simplesmente estar junto, sem agendas
ocultas.
Entre o ideal e o real
A amizade, como concebida por Sócrates e outros filósofos,
sempre foi um ideal a ser perseguido, não uma realidade garantida. Se hoje ela
parece mais frágil, talvez seja porque permitimos que o pragmatismo do mundo
contemporâneo a reduzisse a uma ferramenta de sobrevivência social. No entanto,
a história de Críton e Sócrates nos desafia a refletir: mesmo em um mundo
movido por interesses, ainda podemos escolher cultivar relações baseadas em
valores compartilhados, onde a presença do outro valha por si mesma — não pelo
que ela pode nos render. Afinal, como diria o próprio Sócrates, "uma vida
não examinada não vale a pena ser vivida". E que exame seria mais urgente
do que o das nossas próprias motivações ao chamarmos alguém de
"amigo"?
0 Comentários