A armadilha das metáforas emocionais: por que comparar cavalos e humanos é uma distorção perigosa

 

Fato real: Animal foi resgatado com pequenos ferimentos em uma fazenda de Itupeva — Foto: Divulgação/Prefeitura de Itupeva

Em tempos de redes sociais, metáforas emocionais têm se tornado uma poderosa ferramenta para transmitir mensagens de incentivo e esperança. Um exemplo recente  é um vídeo que circula na internet contando a história de um cavalo preso em um atoleiro que, ao ser cercado por outros cavalos correndo ao seu redor, reencontra forças para sair sozinho da lama. A mensagem central é inspiradora: a força da comunidade nos impulsiona a superar nossos próprios desafios. No entanto, quando analisamos mais atentamente, percebemos uma séria distorção nessa comparação entre o comportamento animal e a complexidade da experiência humana.


A primeira falha evidente é a
diferença de capacidade cognitiva. Cavalos são seres sencientes, capazes de sentir medo, segurança e confiança, mas operam majoritariamente em resposta a estímulos imediatos e instintos básicos de sobrevivência. Eles não planejam o futuro, não elaboram estratégias de superação psicológica nem desenvolvem consciência crítica sobre sua situação — algo que é inerente à cognição humana. Ao sugerir que a simples presença de outros seres pode, sozinha, despertar uma "força interior" comparável à humana, a história ignora toda a complexidade dos processos emocionais, racionais e sociais que moldam nossas reações.

Além disso, essa narrativa reduz a luta humana a uma questão de "autoestima despertada", desconsiderando fatores como traumas, doenças mentais, condições sociais e desigualdades, que não podem ser superados apenas com torcida e inspiração. Diferente de cavalos, seres humanos enfrentam batalhas internas que exigem muito mais do que estímulos externos: demandam reflexão, autoconhecimento, apoio terapêutico, estrutura social e, muitas vezes, mudanças concretas na realidade material.

Outro ponto importante raramente considerado é que mesmo entre animais, nem sempre a motivação é suficiente. Se o cavalo estivesse, por exemplo, com a perna quebrada ou ferido gravemente, sua força ou seu instinto de seguir o grupo seriam insuficientes para tirá-lo do atoleiro. A presença da comunidade não repararia sua limitação física real. Isso nos remete à realidade humana: há situações em que a dor, o trauma ou limitações materiais são tão severos que só apoio emocional não basta. É preciso intervenção concreta, cuidado especializado e, muitas vezes, paciência e reabilitação longa.

Assim, a metáfora falha duplamente: primeiro, por ignorar a diferença entre o instinto animal e a complexidade do ser humano; segundo, por desconsiderar que nem toda força interior é capaz de vencer obstáculos físicos ou psicológicos sem suporte adequado.

Não se trata de desprezar o valor do apoio, da amizade e da comunidade — eles são essenciais. Mas comparar a jornada humana de superação com a reação instintiva de um animal preso em um atoleiro é uma simplificação que, embora emocione, não respeita a dignidade da luta humana.

Em resumo: metáforas emocionais têm seu lugar, mas não devem substituir a análise crítica da realidade. Celebrar o apoio comunitário é importante, desde que não se perca de vista a complexidade da vida humana e a seriedade dos desafios que muitas pessoas enfrentam todos os dias.

Nota:

O cavalo da foto foi resgatado após ter caído em um buraco cheio de água e que media dois metros de profundidade, em uma fazenda na região do Monte Serrat, em Itupeva (SP).  Foi o dono do animal quem acionou o Corpo de Bombeiros para fazer o resgate. Segundo os bombeiros, o cavalo estava atolado de água até o pescoço e corria risco de morte.


 

0 Comentários