A sociedade contemporânea vive uma crise silenciosa. Ela
começa dentro de cada indivíduo e se espalha pelos campos social, político e
cultural. O fenômeno que descrevo não surge repentinamente. Pelo contrário. Ele
se manifesta de forma gradual, infiltrando-se nas relações humanas, nas
escolhas cotidianas e, principalmente, nas estruturas de poder. Portanto, é
preciso compreendê-lo com profundidade.
Ao longo dos anos, observei um padrão crescente: muitos
indivíduos carregam um vazio interior difícil de preencher. E, por não
saber lidar com esse buraco emocional, buscam satisfação em elementos
superficiais. Assim, o consumismo se torna a principal fuga. Afinal, quando a
pessoa não se conhece, ela tenta preencher esse vazio com qualquer estímulo
imediato.
O vazio interior na era da hiperconexão
O consumo, porém, mudou. Antes ele se dava em objetos. Hoje,
ele se dá em vídeos, informações, estímulos instantâneos, distrações
permanentes. As pessoas consomem conteúdo não para aprender, mas para
escapar. E esse escapamento não resolve nada, porque afasta o indivíduo de si
mesmo.
Portanto, vivemos uma epidemia de desconexão emocional. As
pessoas não se autoconscientizam. Elas não se observam. Não se compreendem. E,
como consequência, passam a procurar sentido em coisas fúteis, sem perceber que
essas buscas apenas ampliam a angústia.
As redes sociais aceleraram esse processo. Elas oferecem um
palco onde todos esperam encontrar sorte, visibilidade, validação.
Contudo, essa busca incessante por reconhecimento virtual só aprofunda o buraco
interno. E, então, muitos permanecem perdidos, incapazes de se
encontrar.
O anarcodindividualismo como distorção política
Há ainda outro tipo de comportamento social que emerge desse
mesmo vazio interior: o que chamo de anarcodindividualismo. Esse perfil
psicológico acredita que o indivíduo está acima de tudo. Ele rejeita o Estado.
Ele se considera soberano. Assim, passa a agir como se sua vontade fosse lei.
Esse tipo de visão não é, como alguns pensam, parte da
esquerda nem da direita. Na verdade, ela cria um pensamento que, em muitos
aspectos, se aproxima de formas autoritárias e excludentes. Por isso, afirmo:
esse anarcodindividualismo produz, sim, elementos que lembram práticas
fascistas, ainda que muitas pessoas não percebam esse risco.
Por essa razão, muitos indivíduos acreditam estar lutando
contra um sistema político dominante. Eles se veem como parte de um movimento
de resistência — seja à esquerda ou à direita. Entretanto, o que realmente os
move não é ideologia, mas sim sua carência interior. Eles projetam essa
angústia na política, buscando um espaço onde se sintam pertencentes.
A direita, a esquerda e os equívocos de ambos os lados
Não é novidade que a direita, em muitos momentos,
instrumentaliza esses sentimentos. Porém, também vejo a esquerda caindo na
mesma armadilha. Ambos os lados, por vaidade ou ambição de status, atraem
pessoas que buscam preencher o vazio por meio do engajamento político.
Esse fenômeno cria militantes que se movem por impulso
emocional, não por consciência social. Assim, muitos acabam buscando
reconhecimento, cargos, poder ou sobrevivência material dentro dessas
estruturas. Infelizmente, isso desvirtua o sentido dos movimentos sociais.
A esquerda contemporânea, especificamente, enfrenta um
grande desafio. Ela não conseguiu responder à altura às transformações impostas
pelo capitalismo digital. Não enfrentou a mudança linguística que transformou
“trabalhador” em “colaborador”. Essa simples mudança não é apenas semântica.
Ela disfarça a exploração, oculta a luta de classes, enfraquece a
identidade de categoria e reduz a clareza das contradições sociais.
Chamar trabalhador de colaborador é uma derrota simbólica e
política. E, ainda assim, sindicatos, movimentos e lideranças aceitaram essa
terminologia sem resistência. Quando até movimentos historicamente combativos
aderem ao termo, a narrativa dominante vence. E a esquerda falha em reagir.
A perda dos direitos trabalhistas e o enfraquecimento dos
movimentos
Vivemos um período em que direitos trabalhistas foram
corroídos. E isso não aconteceu apenas por imposição governamental. Muitos
erros foram cometidos pelos próprios movimentos trabalhistas e sindicais. A
desarticulação política, a falta de estratégia e a incapacidade de construir
uma narrativa forte contribuíram para esse retrocesso.
Assim, os trabalhadores perderam direitos, proteção social e
reconhecimento. E a esquerda, fragmentada, não conseguiu organizar uma resposta
eficiente. Ela falhou no discurso, na mobilização e na leitura das
transformações tecnológicas do trabalho.
É preciso reconhecer esses erros para que exista avanço. Não
adianta romantizar o passado ou negar as falhas. A esquerda necessita recuperar
seu compromisso com a mudança social. No entanto, para isso, deve se libertar
do interesse material que hoje domina grandes partes de suas lideranças.
A crise moral e ética dentro dos movimentos
Ao longo do tempo, percebi que muitos militantes e
dirigentes não enxergam o movimento como um ideal de transformação. Para eles,
trata-se de uma forma de vida, uma oportunidade de ascensão, um meio de obter
cargos, salários, indicações.
Essa relação instrumentalizada corrompe a luta. Ela
distancia o movimento de sua essência transformadora. Ainda existem pessoas
puras, dedicadas, comprometidas com o bem coletivo. Porém, a minoria. A maioria
mistura seu interesse pessoal com o discurso político.
E isso afasta a população. As pessoas percebem a
incoerência. Por isso, em muitos lugares, a esquerda perde credibilidade.
Minha posição: Humanismo e Progressismo
Em minha visão, não me identifico com essa esquerda
pragmática e burocrática. Sou, antes de tudo, humanista e progressista.
Acredito na construção de uma humanidade melhor, guiada pela ética, pela
liberdade, pela igualdade e pelo respeito às diferenças.
Luto por uma sociedade em que:
• a dignidade humana seja prioridade;
• as relações sociais sejam justas;
• a violência contra mulheres desapareça;
• o machismo seja superado;
• o racismo estrutural seja enfrentado;
• a exploração econômica perca força;
• a liberdade individual conviva com a responsabilidade coletiva.
Não é possível viver plenamente feliz enquanto existem
pessoas sofrendo discriminação, violência ou desigualdade sistêmica. O
individualismo extremo empobrece a experiência humana. Precisamos cultivar
empatia, consciência e solidariedade.
Reflexões finais
O vazio interior, o consumismo compulsivo, a necessidade de
status político e a crise da esquerda estão interligados. Eles fazem parte de
um mesmo fenômeno: a perda da capacidade de olhar para dentro. Quando as
pessoas não se conhecem, tornam-se vulneráveis às manipulações, às ilusões e às
falsas narrativas.
Por isso, proponho que retomemos o autocuidado e o
autoconhecimento como fundamentos para qualquer transformação social real.
Somente um indivíduo consciente é capaz de contribuir de forma honesta para um
movimento político. E só um movimento político que nasce da honestidade pode
gerar mudança verdadeira.
Assim, convido cada leitor a refletir:
O que você tem feito para preencher seu vazio interior?
Em qual movimento você deposita sua esperança?
Você luta por valores ou por reconhecimento?
Ao responder essas perguntas com sinceridade, damos o
primeiro passo rumo a uma sociedade mais justa, consciente e humana.

0 Comentários