A noite de ontem foi longa demais. Começou com uma esperança
discreta, quase silenciosa: duas cápsulas de BCAA e um comprimido de potássio
antes de sair de casa. Não era uma preparação para grandes aventuras, não havia
trilhas, nem desafios grandiosos, apenas uma caminhada curta até a Avenida
Belarmino Cota Pacheco. Um percurso de 1,5 km. Para qualquer um, quase nada.
Para mim, um ato de coragem.
Saí decidido, apoiado nas duas muletas. O passo era rápido,
firme na medida do possível. O relógio marcava uma média de 13 km/h, como se eu
quisesse provar, nem que fosse para mim mesmo, que ainda existe força escondida
em algum canto do corpo. Cheguei em casa exausto, mas satisfeito. Parecia uma
vitória.
Só que, uma hora depois, o corpo me cobrou. A perna
esquerda, já torta pelo erro médico, marcada pela infecção que insisto em
controlar com arnica e própolis vermelha, entrou em colapso. A dor foi tão
forte que parecia atravessar a carne e atingir a alma. A fadiga tomou conta
como uma sombra espessa, sufocante.
Tomei o remédio para dormir, tentando enganar a noite. Mas
às 1h30 já estava desperto, com a mente acesa pelo incômodo e o corpo em
rebelião. Rolei na cama, busquei posição, respirei fundo. Nada. Só dor. Só
cansaço. O tempo passou devagar, como um inimigo que se diverte em prolongar a
tortura. Foi só perto das cinco da manhã, depois de mais um comprimido de
potássio e um copo de leite com chocolate, que o sono finalmente veio, piedoso
e tardio.
Entre um espasmo e outro, não pude evitar a comparação.
Minha memória me levou direto a 2020, a uma manhã clara em Uberlândia. Naquele
sábado, pedalei até o distrito de Tapuirama: 117,91 km em pouco mais de seis
horas. Média de 19,1 km/h, velocidade máxima de 49,7 km/h. Uma performance que
me enchia de orgulho. Lembro bem da sensação de chegar em casa. Nenhuma fadiga
extrema, nenhum sofrimento. Apenas a tranquilidade de quem havia se preparado
bem, com suplementos, BCAA e gel de palatinose extraída da beterraba. O corpo
respondia como uma engrenagem precisa.
É estranho pensar como a vida pode virar de ponta-cabeça em
tão pouco tempo. De um atleta que encarava trilhas rurais e estradas
desafiadoras, passei a um homem que precisa medir esforços para andar poucos
metros. E tudo isso não por escolha, não pelo peso natural da idade, mas pela
soma cruel de um acidente, de erros médicos e de uma infecção que se recusa a
ir embora.
Hoje, minha perna esquerda carrega a marca do desvio varo
deixado pela cirurgia. O eixo ficou deslocado em 4%, tornando o membro 75%
inválido. Não há exercício capaz de devolver a carga perdida. Não há treino que
me faça caminhar sem as duas muletas. Quando saio de casa, é como se todo o
peso do corpo dependesse da perna direita, que se tornou meu único pilar. O
lado esquerdo já não suporta nada. É como se estivesse presente apenas para
lembrar do que não consigo mais.
E, no entanto, sigo tentando. Tomo suco de beterraba com
maçã para manter o corpo nutrido. Uso arnica e própolis vermelha como aliados
silenciosos no combate à infecção. Luto com os recursos que tenho, porque
desistir não está no meu vocabulário. Mas a tristeza me visita com frequência.
Ela aparece nos silêncios da madrugada, quando a dor não dá trégua, e me faz
pensar no quanto minha vida mudou.
As distâncias que percorro hoje são diferentes. Antes, eu
media em quilômetros: 50, 100, 117. Hoje, a métrica é outra: 1,5 km até a
avenida já se transforma em uma maratona. Cada passo é calculado, cada saída é
precedida de remédios e planejamentos. É como se o corpo tivesse se tornado um
campo de batalha onde toda conquista é pequena, mas dolorosamente
significativa.
Ainda assim, guardo as lembranças do tempo em que tinha
saúde como um tesouro. Penso nas trilhas rurais de Uberlândia, no vento no
rosto, na sensação de liberdade ao pedalar. Penso no orgulho de registrar meus
treinos, nas metas alcançadas, na força que parecia inesgotável. Essas memórias
me alimentam, mesmo quando a realidade insiste em me colocar de joelhos.
Quem sabe o futuro ainda me reserve alguma reviravolta.
Talvez, se eu vencer a bactéria. Talvez, se retirar a placa de titânio. Talvez,
até mesmo se a amputação for inevitável. Não sei. Mas alimento a esperança de,
de algum modo, voltar a ser atleta. Nem que seja reinventando o que isso
significa.
Por enquanto, sigo vivendo entre distâncias e lembranças.
Entre a dor de hoje e a saudade de ontem. Entre a insônia da madrugada e a
esperança teimosa de um amanhã menos cruel. E se a vida insiste em me impor
obstáculos, eu sigo registrando cada passo, cada pedal do passado, cada
tentativa presente. Porque, no fundo, ainda acredito que meu corpo, mesmo
ferido, ainda guarda um resquício daquela força que um dia me levou até
Tapuirama.
Nota: Tapuirama é um distrito de Uberlândia, estado de Minas Gerais. Segundo o censo IBGE 2010, Tapuirama tem 1911 habitantes e 802 domicílios na área rural e 1981 habitantes em 703 domicílios na área urbana. O distrito está localizado no extremo da Zona Sudeste do município, à 48 km do centro de Uberlândia.
Uberlândia, 09 de setembro de 2025

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