Crônica: “Na trilha da memória”

 


Há lugares que ficam gravados na alma — não apenas pelo que são, mas pelo que representaram em nossas vidas. A trilha batida pela bicicleta, o barulho ritmado dos pneus sobre a terra vermelha, o cheiro de mato molhado nas manhãs frias de Uberlândia. Tudo isso ainda pulsa em mim como se fosse ontem. Mas agora, é só a memória que pedala.

Foram anos cruzando paisagens como quem atravessa sonhos. Três vezes por semana, religiosamente, deixava a cidade para trás e me embrenhava nas trilhas rurais, onde a vida ainda caminha no compasso da natureza. A bicicleta era mais do que meio de transporte — era extensão do meu corpo e da minha liberdade. E cada pedalada era um gesto de amor ao meio ambiente, à geografia viva e pulsante da terra.

Na primeira foto, estou diante de uma cachoeira que mais parece um véu de noiva bordado em pedra. A água escorre límpida e forte, como os dias em que meu corpo também era firme, quando eu apontava para o alto como quem diz: "é ali que mora a beleza, é isso que vale a pena viver". Lembro do barulho da queda d’água abafando o mundo, do frescor invadindo minha pele e da certeza silenciosa de que estava no lugar certo. Um instante de harmonia total com a natureza.

Cachoeira Marimbondo, em Uberlândia

A segunda imagem me mostra em movimento, em cima da bicicleta, percorrendo uma estrada de terra ladeada por campos dourados. O sol ainda preguiçoso desenha sombras longas, e a luz da manhã brinca com os contornos do capacete e da mochila. Era assim que eu vivia: sem pressa, sem barulho, apenas escutando o chamado da estrada, o canto dos pássaros, o farfalhar das folhas. O horizonte era sempre uma promessa — e eu acreditava.

Na terceira foto, mais um retrato do meu ritual sagrado: vestir o uniforme laranja e preto, checar os pneus, ajustar o capacete, e partir. Ali, sobre duas rodas, eu era inteiro. Geógrafo por formação, cicloativista por paixão, encontrava no campo aberto a melhor sala de aula, onde o solo contava histórias, as árvores ensinavam resiliência e os riachos falavam de movimento contínuo.

Mas a vida, por vezes, ergue pedras no caminho. Um acidente inesperado quebrou mais do que ossos — interrompeu o ritmo de uma rotina que era poesia em movimento. De um dia para o outro, fui arrancado das trilhas e lançado ao silêncio das pausas forçadas. A bicicleta, minha parceira de jornadas, repousa agora encostada, enquanto eu me reinvento entre as lembranças e os limites.

E é por isso que volto a essas fotos como quem visita um velho amigo. Elas me recordam de quem eu fui, de tudo que vivi e do quanto fui feliz naquele tempo de vento no rosto. Não com tristeza, mas com gratidão. Porque cada trilha que percorri ainda existe em mim. Cada nascente que admirei, cada árvore sob a qual descansei, cada campo que atravessei... tudo isso ainda pulsa em minha memória como pedaladas eternas.


Hoje, talvez eu não suba morros como antes, mas continuo subindo — com a força da lembrança, com a fé de quem acredita que o amor pela natureza não se mede em quilômetros, mas em entrega. Se antes eu cuidava do meio ambiente pedalando por ele, agora sigo cuidando com palavras, com exemplos, com memória.

A vida me tirou a trilha por um tempo, mas não levou de mim o ciclista. Porque, no fundo, quem ama a estrada nunca deixa de pedalar — apenas muda o caminho.

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