Como um ser que se identifica com o estoicismo, a
experiência que descrevo neste artigo é um campo fértil para a aplicação dos
princípios dessa filosofia. Não se trata de uma queixa, mas de uma análise fria
e racional dos eventos e das emoções que eles provocam, buscando a virtude no
discernimento entre o que está em nosso controle e o que não está.
O Encontro e a ilusão da providência divina
Hoje, deparei-me com uma mulher, Dona Maria, que mostrou
preocupação com a situação de minha perna. Ao expressar solidariedade e
compaixão com meu sofrimento, ela respondeu com a crença comum: "Deus vai
resolver." Essa frase, tão enraizada na cultura popular, desencadeou em
mim uma série de reflexões que ecoam a doutrina estoica.
Minha resposta imediata, ainda que sem intenção de ofender,
foi um questionamento àquela fé tão pessoal diante do sofrimento massivo e
aleatório que assola o mundo. "Como ficam as crianças morrendo na guerra,
em Gaza, em tantos lugares? Elas precisariam muito mais da intervenção divina
do que eu." A pessoa ficou sem palavras, e compreendo sua perplexidade, ficou
sem resposta à minha indagação. O estoico, contudo, não busca agradar ou
consolar com falsas esperanças, mas confrontar a realidade com a razão.
Não me considero egoísta por não rogar por uma intervenção
divina para meu próprio sofrimento. Pelo contrário, seria uma forma de
desvirtude, uma negligência da universalidade do sofrimento. Minha vida, até
este ponto, foi plena de experiências, alegrias e ações que considero boas.
Tenho vivido. Por que eu mereceria uma intervenção que tantas outras vidas
inocentes, mal vividas, não recebem? O universo não opera por favoritismos. A
dor e a doença não são punições, nem a cura, uma recompensa. Elas são parte do
curso natural das coisas, do logos universal.
A Recusa do sofrimento inútil e a soberania da vida
Eu, Frank Barroso vítima de alunos da medicina do hospital
escola da Universidade Federal de Uberlândia, onde fui mutilado, por
fim, expressei meu desejo de não sofrer.
"A única coisa que eu não quero é ficar sofrendo." Essa é uma
aspiração profundamente humana e, de uma perspectiva estoica, um ponto crucial.
O estoico não busca o sofrimento, mas aceita-o quando inevitável,
transformando-o em um exercício de resiliência e virtude. No entanto, a recusa
do sofrimento inútil e degradante, porque destrói toda dignidade humana.
Depois em conversa com uma amiga no WhatsApp, relatei o
encontro na rua em quando caminhava com minhas duas muletas. Fiz menção a Cícero, o orador e filósofo
romano (embora a referência seja possivelmente ao historiador e filósofo
Sêneca, que praticou a autonomia diante da doença, ou a outros estoicos que
consideraram a eutanásia como uma saída digna em certas circunstâncias, como a
impossibilidade de manter a razão e a virtude), é pertinente.
A vida, na
perspectiva estoica, vale pela capacidade de exercer a razão e a virtude.
Quando a condição física ou mental impede essa prática de forma digna, e o
sofrimento se torna um obstáculo intransponível à eudaimonia
(florescimento humano), a escolha de antecipar o fim não é um ato de desespero,
mas de soberania sobre a própria vida, dentro dos limites do que podemos
controlar. "A vida é minha, não é de Deus, não é de ninguém", reflete
a essência dessa autonomia.
A Realidade crua do sistema: não há deus, apenas ações e
consequências
Minha condição atual, com a perna infeccionada e as sequelas
de cirurgias, não é um mistério divino, mas a consequência direta de falhas
sistêmicas. O relato sobre a infecção hospitalar, a falta de higiene, os
"médicos residentes" e a "indústria da morte" revela uma
análise fria e desapaixonada das causas reais do sofrimento.
O estoico não busca bodes expiatórios sobrenaturais. Ele
busca a análise concreta da realidade concreta. Se há sofrimento em
massa, mortes por negligência, mutilações devido à incompetência, a culpa não
recai sobre uma entidade divina, mas sobre a ação (ou inação) humana e as
estruturas sociais que as permitem. A "bactéria" e suas consequências
não são um desígnio, mas uma falha sistêmica, uma falha de higiene, de
competência e de prioridades.
A crença em uma providência divina que resolverá os
problemas serve, muitas vezes, como uma ferramenta de dominação e conformismo.
"O povo não querer mudar o mundo, o
povo não querer mudar a exploração, o povo não luta contra contra o
capitalismo, o povo não vai contra a
jornada 6 x 1. A massa se conformar com a exploração e o sofrimento, ancora
nas religiões, que lhe convencem que é preciso passar por privações para merecer
o “Reino dos Céus”." Essa é uma visão estoica da religião como ópio do
povo, uma crítica social que se alinha com a busca da verdade e da razão acima
das ilusões.
A Busca por dignidade e o desapego material
Minha insatisfação não é com a falta de dinheiro, mas com a
ausência de dignidade e oportunidades de trabalho. "Eu não gosto de
dinheiro, eu não quero dinheiro, eu quero dignidade." Isso ressoa com a
indiferença estoica em relação aos bens externos, que não são intrinsecamente
bons ou maus. O dinheiro, o status, a carreira — tudo isso são adiaphora,
coisas preferíveis, mas não essenciais para a virtude e a felicidade.
Minha trajetória profissional, com escolhas que priorizavam
a liberdade e a experiência sobre a estabilidade material, é um reflexo dessa
busca por algo além do meramente financeiro. A satisfação de fazer festas,
agradar pessoas, ser "príncipe" pelo tratamento humano, e não pela
riqueza, demonstra uma aplicação prática dos valores estoicos: a benevolência e
a conexão com o próximo. A decepção com a falta de "companhia", de
"comunidade" no novo local, revela a importância das relações
humanas, que, para o estoico, são preferíveis, mas não devem ser fonte de
perturbação se ausentes.
O Passado, o presente e o futuro: controlando apenas
nossas percepções
A afirmação de que não posso mudar o passado, nem o
presente, nem o futuro, encapsula a essência do controle estoico das causas externas
que não controlo. O passado é imutável. O futuro é incerto e não está em nosso
poder. E o presente? A doença, a falta de recursos para o tratamento, a
indiferença do sistema – tudo isso está fora do meu controle direto.
A pior coisa é essa: o passado, todo mundo sabe que não
muda, mas mudar o presente você pode se tiver condições materiais e
plausíveis, A contradição aqui é a
própria essência da luta estoica: o que se pode mudar no presente são nossas percepções
e juízos sobre os eventos, e nossas ações virtuosas em resposta a
eles. A bactéria que avança, a falta de dinheiro para tratamento e a cirrugia – esses são eventos
externos. Minha atitude diante deles, minha coragem em perfurar a perna para
aliviar a dor, fazer a drenagem do
sangue morto e que vira colônia de pus, minha recusa em me conformar com a
vitimização – isso está sob meu controle.
O sofrimento que experienciei e que testemunho em outros 60
indivíduos é uma realidade concreta, dura, que exige uma resposta racional e
virtuosa, não uma crença cega ou uma negação. Não se trata de uma negação da
dor, mas de uma recusa em permitir que a dor dite a qualidade de nossa vida
interior ou nos desvie da virtude.
Conclusão: a virtude em meio à adversa realidade
A vida, com todas as suas vicissitudes, é um campo de
treinamento para o estoico. As dores físicas, as injustiças sociais, as
decepções pessoais – tudo isso são oportunidades para exercitar a razão, a
coragem, a justiça e a temperança. Não há um "Deus" que virá
resolver; há apenas a realidade e nossa capacidade de enfrentá-la com
integridade. A dignidade não se encontra na ausência de sofrimento, mas na
forma como o encaramos, na capacidade de manter a calma e a razão, e na
persistência em agir virtuosamente, mesmo quando o mundo parece desmoronar ao
nosso redor. Minha perna, minha saúde, as oportunidades de trabalho, a resposta
das pessoas – tudo isso são indiferentes. Minha mente, meus juízos, minha
vontade de agir com dignidade – isso é tudo o que realmente importa e o que
está sob meu controle.
FRANK BARROSO
06.07.2025
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