Quando a Dor Veste o Corpo e a Palavra

 


Há dores que não doem só na carne. Elas se instalam na alma, reorganizam os dias, reescrevem nossa história em um tom que nunca escolhemos. A minha começou com o estrondo de um atropelamento e a promessa não cumprida de socorro.

Era maio de 2023. O mês das flores, das mães, do recomeço outonal. Para mim, foi o mês da queda. Caí com a força de quem carregava sonhos nas pernas. Fraturei o platô tibial — essa parte do corpo que poucos conhecem, mas que sustenta tudo: o caminhar, o dançar, o pedalar.

Levaram-me ao Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia. Esperava acolhimento. Ganhei descaso. Ali, médicos residentes — alguns talvez ávidos por aprender, outros apenas frios como as paredes da sala cirúrgica — me transformaram em experimento. Faltou escuta, sobrou arrogância.

A cirurgia, comandada por um médico que jamais deveria comandar ninguém, mais destruiu o que era ser curado.  Em vez de alinhar o que estava torto, deixaram torto o que era passível de reparo. Fizeram da minha perna um desvio raro — tão raro que nem nos livros de medicina sabem lidar.

Usaram uma furadeira para fixar a placa de titânio. O osso fraturado, que precisava de ser colado e respeito, foi fragmentado. E como se não bastasse, retiraram enxerto do meu quadril, da crista ilíaca — essa região que agora também grita.

Resultado: meu joelho não dobra mais o futuro. Perdi 80% da força da perna. Ganhei 100% da consciência do que significa ser mutilado por erro médico. Perdi mobilidade. Mas não perdi a lucidez.

E como a tragédia gosta de fazer eco, fui infectado durante o procedimento cirúrgico. Não por uma, mas por duas bactérias: Enterobacter cloacae — sorrateira e persistente — e a temida KPC, uma das que mais matam nos hospitais do mundo. Encarei o que muitos não sobrevivem.
Venci a KPC com antibióticos, suplementos, probióticos, esperança e fé. A outra, ainda carrego comigo. Um inimigo invisível na perna que resiste.

Antes disso tudo, eu era vento. Fui o criador de mil rodas girando pelas ruas de Uberlândia. Promovi mais de mil passeios ciclísticos. Ensinei mais de 2.500 pessoas a redescobrirem a vida pelo pedal. Vi gente vencer a obesidade, a depressão, o medo da rua.
Hoje, luto para vencer a tristeza de não conseguir subir em uma bicicleta.

Faço exercícios todos os dias. Lento, sozinho, firme. Ainda consigo cozinhar minha comida, tomar banho, limpar a casa — por isso celebro. Não como quem ignora a dor, mas como quem, apesar dela, insiste.

Há momentos em que me sinto pleno por estar vivo. E há instantes escuros em que penso em partir, em fazer cessar essa longa tempestade que virou meu corpo.
Mas não é fácil. Porque dentro de mim, ainda mora aquele menino que sonhava ao ver a cidade do alto de uma bike. Ele ainda me dá a mão quando o adulto desaba.

Descobri que mesmo entre ferros e fraturas, bactérias e descasos, que ainda é possível ser poeta. A dor virou palavra. A indignação virou verso. E enquanto eu puder escrever, sei que ainda existo.

A medicina me falhou. A justiça ainda dorme. Mas eu, aos pedaços, sigo inteiro — porque ainda acredito na poesia como ato de resistência.

 

FRANK BARROSO

20.06.2025

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