O vento que me guarda: fragmentos de um corpo imaginário

 


Trago comigo um pedaço da noite — não no bolso, nem nas mãos — mas colado ao meu peito, como um segredo que se recusa a dormir. A noite tem cheiro de tinta invisível e gosto de estrela derretida. Ao beber mais um gole, percebo: não é vinho, é chuva líquida que me embriaga com lembranças que nunca vivi. E corro. Corro perigo, corro por dentro.

Dentro de mim, um coração bate com ecos de uma língua que só os ventos conhecem. A cada pulsar, o som se dobra em espirais, e eu escuto — escuto tudo: palavras do vento, sussurros da lua, confissões esquecidas na dobra do tempo.

O vento fala comigo. Ele se aproxima como quem já viveu cem vidas, e me diz que desde o início dos tempos ele corre, ele busca, ele deseja. Mas o que o vento quer, senão transformar-se em brisa? Não uma brisa qualquer, mas aquela que carrega o perfume das flores sem despetalá-las, que entende o peso leve das folhas de outono, que guarda os pequenos murmúrios do mundo e o gesto silencioso do amor.

Nesse instante, deixo de ser corpo e me torno vento também. Vou com ele. Transbordo. Perco o contorno. O tempo não é mais cronológico — ele se curva, dança e se dissolve nas margens da minha consciência.

Sigo rumo à manhã, mas não com os pés. Flutuo sobre pensamentos que me fazem rir — não porque são engraçados, mas porque são absurdamente belos. Rir sozinho é um jeito de conversar com o que não se entende. Há festa. Há vinho imaginário. Há uma mesa posta no meio de uma nuvem.

O ar da noite — esse sopro de vida que me acompanha como um cão invisível — me sopra um lembrete. Não com voz, mas com presença. Ele me faz lembrar o que insisto em esquecer: que ainda existo. Que apesar do delírio, da fuga, da vertigem e do riso sem motivo, ainda sou alguém. Um ser que sente, que guarda fragmentos da noite dentro do peito e que dança com as palavras do vento.

Não sei onde estou, e talvez não importe. O real dissolveu-se no fundo da taça. O chão virou espelho, o céu virou página em branco. Escrever é sonhar acordado com tinta viva.

E se tudo isso foi sonho, que ao menos o vento leve com ele o que de mais secreto guardei: o jeito do amor, no silêncio da brisa.

0 Comentários