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Brincadeiras de menino. quadro de Ricardo Ferrari, 2014 |
Hoje cedo, como de costume depois da mutilação
que sofri dos alunos da medicina do Hospital das Clinicas da UFU, faço exercícios
sempre ouvindo uma boa música. A
playlist era as melhores do grupo 14 Bis. Quando ouvi a música “Bola de Meia,
Bola de Gude”, fiquei refletindo sobre
esse trecho:
"Pois não posso, não devo, não quero
Viver como toda essa gente insiste em viver
E não posso aceitar sossegado
Qualquer sacanagem ser coisa normal"
(Milton Nascimento – Bola de Meia, Bola de Gude)
Esses versos, compostos por Milton Nascimento
e Fernando Brant, nunca foram tão atuais. Em um tempo onde mentiras são
tratadas como "opinião", onde vídeos falsos circulam como verdades
absolutas, onde o senso crítico cede espaço à viralização, não aceitar
"qualquer sacanagem como coisa normal" é um ato de resistência ética.
A
banalização da mentira
Vivemos em uma era marcada pela superexposição
da informação — e pela deturpação da verdade. Com as redes sociais, a
velocidade com que boatos, notícias falsas e memes ofensivos se espalham é
alarmante. A desinformação ganhou novos contornos com o uso de inteligência
artificial, capaz de criar áudios, imagens e vídeos falsos com aparência
quase perfeita.
A consequência é clara: a verdade se torna
relativa, manipulável, frágil. Em nome do entretenimento, do
"engajamento" ou da disputa política, fatos são distorcidos,
reputações destruídas, e sentimentos de ódio são alimentados com facilidade
assustadora. O que antes seria considerado sacanagem, hoje é compartilhado com
risos e emojis. Isso não pode ser normal.
Quando a
maldade se disfarça de piada
Os memes e vídeos manipulados frequentemente escondem
intenções cruéis por trás do humor. Ridicularizam, desumanizam, promovem
preconceitos. E o pior: atraem não apenas os desatentos, mas também pessoas com
formação acadêmica, que, por convicções ideológicas ou preguiça crítica,
escolhem ignorar a fonte, o contexto e a consequência do que compartilham.
Isso revela uma erosão grave da nossa responsabilidade
social. Se antes esperávamos que a educação fosse barreira contra a
ignorância, hoje vemos que nem sempre ela é antídoto contra a manipulação. A
formação acadêmica, sem ética, se torna vazia. Saber usar um argumento não
significa saber usá-lo com verdade.
A
normalização da crueldade
Aceitar "sacanagem como coisa
normal" é perigoso. Nos anestesia. Nos torna cúmplices do que deveria
nos indignar. Quando piadas racistas, machistas ou homofóbicas ganham
curtidas e compartilhamentos, estamos diante de uma sociedade que perdeu a
sensibilidade pelo outro. Quando calúnias se espalham mais rápido que
desmentidos, vivemos a lógica do linchamento digital.
Estamos nos acostumando com a distorção. Com a
zombaria. Com o ataque gratuito. Com o julgamento raso. E isso nos desumaniza.
A
resistência começa na consciência
Não aceitar "qualquer sacanagem como
coisa normal" exige mais do que boas intenções. Exige atitude. É preciso
desenvolver um olhar crítico diante de cada conteúdo consumido. Perguntar: quem
produziu isso? com qual intenção? Verificar fontes, desconfiar de manchetes
escandalosas, pensar antes de compartilhar.
É também um compromisso com o outro. Com a
dignidade humana. Rejeitar o riso fácil que humilha, o dado falso que
destrói, a manipulação que seduz. Não basta ser contra a mentira — é
preciso combatê-la com responsabilidade e coragem.
Quando o
menino dá a mão ao adulto
Milton e Brant nos lembram: quando o adulto
fraqueja, o menino interior nos dá a mão. Esse menino acredita em
amizade, respeito, caráter, bondade. Ele se recusa a achar normal o que está
errado. Ele nos chama de volta ao que é essencial. E talvez, neste tempo de
guerra de narrativas, ele seja nossa única salvação.
O mundo não precisa de mais cinismo. Precisa
de lucidez, coragem e ética. E isso começa com escolhas pequenas: não
rir da maldade, não compartilhar o falso, não se omitir diante do injusto.
Não podemos viver como essa gente insiste em
viver. Não podemos aceitar sossegados qualquer sacanagem como coisa normal. Não
agora. Não nunca. A verdade, mesmo ameaçada, continua sendo um farol. A
ética, mesmo ignorada, ainda é o caminho. E o menino que mora em nós ainda pode
— e deve — nos guiar. Porque, no fim, a beleza do mundo só será possível
onde houver verdade, respeito e amor.
FRANK
BARROSO
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21.06.2025
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