Em muitas cidades de economias emergentes,
o sistema de transporte público por ônibus enfrenta desafios significativos.
Ônibus frequentemente ineficientes, poluentes e inseguros são a norma, muitas
vezes operados por indivíduos, e não por empresas formais. Essa situação é um
reflexo de uma combinação de fatores, incluindo regulamentação fraca,
acesso limitado a capital e capacidades
técnicas e administrativas deficientes tanto dos operadores quanto
das autoridades.
Nesse cenário, os contratos de concessão
emergem como ferramentas cruciais. Eles são essenciais para garantir que os
operadores entreguem um serviço eficiente, limpo e de alta qualidade, que
esteja alinhado com as expectativas dos usuários e as exigências das
autoridades.
O Caminho para a melhoria: modelos virtuosos de concessão
Existem inúmeros exemplos globais de cidades que revolucionaram seus
sistemas de transporte público ao implementar modelos de concessão virtuosos.
Esses modelos não apenas incentivam a profissionalização dos
prestadores de serviços e das autoridades, mas também resultam em um
serviço significativamente melhor para os usuários. No entanto, as sutilezas
desses modelos frequentemente são negligenciadas por planejadores urbanos em
outras localidades, levando à concepção e aquisição de concessões aquém do
ideal.
Reconhecendo essa lacuna, a GGGI (Global Green GrowthInstitute) desenvolveu o relatório "Análise Comparativa de Modelos de Concessão de Transporte Público de Ônibus" ( em inglês: Comparative Analysis of Bus Public Transport Concession Models). O objetivo principal desse estudo é capacitar os tomadores de decisão a compreender os elementos que contribuem para o sucesso dos modelos de concessão e a fornecer diretrizes e melhores práticas para a tão desejada transformação. A urgência dessa mudança é impulsionada pelas múltiplas limitações dos modelos existentes, que frequentemente carecem de controle governamental sobre a receita, apresentam qualidade de serviço inferior, têm cláusulas de concessão pouco aplicadas e operam com veículos inseguros e poluentes.
O relatório da GGGI analisa e compara modelos de concessão de sete cidades na Europa e na América Latina, variando em
tamanho e nível de desenvolvimento. Duas cidades europeias foram selecionadas
por seu desempenho consistente e servem como uma meta ambiciosa para cidades em
economias emergentes. As cinco cidades latino-americanas foram incluídas para
demonstrar o que funcionou na prática em economias emergentes e para
identificar as barreiras políticas, econômicas e sociais que dificultam a
transformação.
Todas as cidades analisadas no relatório implementaram – em graus
variados – sistemas de transporte integrados. O relatório dedica
uma seção específica para cada uma delas. Para cinco das cidades – Londres (Reino Unido), Bogotá (Colômbia), Cidade do México
(México), Estocolmo (Suécia) e Uberlândia (Brasil) – o foco da
discussão está em como seus modelos de concessão atuais
operam. Para as duas cidades restantes, a análise gira em torno do processo de transição de um sistema de
proprietários-operadores para um sistema organizado composto por empresas
formais.
Esta síntese tem como propósito reunir os principais insights e exemplos dos estudos de caso, fornecendo aos
tomadores de decisão as ferramentas necessárias para definir o tipo de modelo
de concessão mais adequado para suas respectivas cidades.
Elementos-chave para modelos de concessão eficazes
O relatório da GGGI descreve oito elementos-chave
que devem ser considerados para o sucesso no projeto e implementação de um
modelo de concessão, com base na experiência dos casos estudados. Esses
elementos são:
- i) Necessidades das partes
interessadas: Identificar e equilibrar as expectativas
de usuários, operadores e autoridades.
- ii) Alocação dos contratos
de serviços: Definir como os contratos serão
distribuídos (por rota, por área, etc.).
- iii) Funções e
responsabilidades da autoridade e dos operadores:
Esclarecer quem faz o quê no planejamento, operação e fiscalização.
- iv) Alocação de riscos:
Determinar como os riscos operacionais, financeiros e de demanda serão
compartilhados.
- v) Duração do contrato:
Definir o período de validade da concessão.
- vi) Regime de remuneração:
Estabelecer como os operadores serão pagos.
- vii) Cláusulas, incentivos
e penalidades de qualidade: Criar mecanismos para garantir e
fiscalizar a qualidade do serviço.
- viii) Processo de
contratação: Definir o método de seleção dos
operadores.
É crucial que os tomadores de decisão considerem esses elementos em
consonância com o contexto político, econômico, social e
tecnológico local.
O processo de planejamento de um modelo de concessão é cíclico e não linear, exigindo a constante definição e
revisão dos elementos mencionados. Geralmente, o processo se inicia com a identificação das necessidades das partes interessadas,
seguida pela definição de como os contratos de concessão
serão alocados (em termos de rotas e/ou áreas de serviço) e os papéis e responsabilidades das partes principais.
Posteriormente, componentes técnicos como cláusulas de qualidade (com
incentivos e penalidades), duração do contrato, modelo de remuneração e
alocação de riscos são projetados, considerando a estrutura do sistema e as
necessidades das partes interessadas. Finalmente, um processo
de aquisição é selecionado para implementar o modelo de concessão.
Necessidades das partes interessadas: a base da planejamento
Um aspecto fundamental do processo de planejamento é a identificação das necessidades, motivações e capacidades dos
principais intervenientes: usuários, operadores e autoridades. Esta
etapa, quando executada com atenção, fornece aos planejadores informações
valiosas para definir objetivos claros e estruturar os elementos específicos
dos contratos de concessão. Isso garante que as necessidades das diversas
partes interessadas sejam atendidas e que a sustentabilidade do sistema
seja aprimorada.
A autoridade deve buscar entender as diferentes necessidades das partes
interessadas e otimizar aquelas que se alinham (por exemplo, eficiência
operacional), ao mesmo tempo em que oferece uma estrutura para buscar acordo
quando elas se opõem (por exemplo, tarifas baixas exigidas pelos usuários
versus altas receitas buscadas pelos operadores). Em última análise, essas
necessidades se refletirão diretamente nas cláusulas de qualidade,
incentivos e penalidades, mas também influenciarão outros elementos
da concessão, como a duração do contrato e o modelo de remuneração escolhido.
As necessidades dos usuários são os principais
impulsionadores das políticas. Cidades como Londres demonstram um forte
compromisso em atender a essas necessidades, tendo implementado uma organização
oficial de "vigilância", a London Travel Watch (LTW).
Essa entidade representa os interesses dos usuários e trabalha para promover
padrões mais elevados de qualidade, desempenho e acessibilidade, resultando em
conquistas como ônibus com piso baixo e acessibilidade para cadeiras de rodas
em toda a frota.
O Ciclo de Serviço de Qualidade, detalhado no relatório, oferece uma estrutura útil para examinar a qualidade do serviço sob diferentes perspectivas e é uma metodologia poderosa para a melhoria contínua. Ele considera não apenas as necessidades expressas dos usuários, mas também como elas se traduzem em objetivos de desempenho e, por fim, na prestação de serviços de qualidade que serão percebidos pelos usuários. O uso dessa estrutura resultará em uma imagem mais clara de como será o ciclo de serviço de qualidade para a cidade, fornecendo uma base para medir o sucesso das autoridades e operadores no cumprimento desses objetivos.
Atribuição dos contratos de serviço: modelos e impactos
Um elemento primordial na estruturação do sistema de transporte de uma
cidade é determinar como o contrato de serviço será alocado às
concessionárias. Essa alocação pode ser feita por rota, por grupos
de rotas, por número de ônibus ou distância percorrida, ou por áreas.
A escolha do modelo operacional do sistema de transporte deve levar em
consideração as características da demanda de viagens, o tamanho e a estrutura
física da cidade, o cronograma de serviços e o desenho das rotas. Além disso,
uma avaliação inicial do nível de organização dos atuais operadores de ônibus
privados e da capacidade institucional da autoridade é fundamental. A escolha
do modelo de atribuição impactará os tipos de serviços que podem ser oferecidos
e os elementos dos contratos de concessão (por exemplo, duração, modelo de
remuneração).
Quatro modelos de alocação comuns são descritos a seguir:
Por Rota
Nesse tipo de concessão, a alocação é por rota específica,
com o serviço sendo prestado entre uma origem e um destino definidos. O
operador deve fornecer um número fixo de ônibus e seguir um trajeto e horários
pré-estabelecidos para cada rota. Embora as concessionárias recebam uma única
rota por contrato, uma empresa operadora pode operar várias rotas
simultaneamente.
Esse modelo exige uma autoridade de trânsito com
processos bem estruturados e equipe capaz de lidar com o
planejamento e a carga operacional de alocações de rotas individuais. É
recomendado para cidades com espaços urbanos consolidados, onde são necessárias
mudanças mínimas no projeto da rota durante a vida da
concessão. Londres é um exemplo desse modelo, com um processo de licitação para
cada uma das 675 rotas da Grande Londres, com 15% a 20% das rotas sendo
licitadas anualmente. Um componente crítico desse regime é a rotação de
operadores para dentro e fora das diferentes rotas, estimulando a concorrência
e uma melhor mobilidade.
Por Grupo de Rotas
Sob este modelo, uma concessionária recebe um conjunto
de rotas com origens e destinos comuns ou próximos. A principal
motivação para essa alocação é promover a eficiência operacional
devido à localização conveniente de garagens, oficinas e escritórios próximos a
essas origens e destinos. A Cidade do México é
um exemplo, onde a alocação é realizada por grupos de rotas (corredores) que
compõem um serviço alimentador ou tronco.
Esse modelo reduz as tarefas administrativas, de
negociação e auditoria para a autoridade, uma vez que há um número
menor de concessões. Pode ser uma escolha atraente para cidades que desejam
implementar um sistema de rotas, mas que não possuem capacidade administrativa
para alocar concessões rota por rota.
Por número de ônibus ou distância percorrida
Para este modelo, a autoridade de trânsito define as rotas e seus
horários, enquanto o operador fornece a frota e o pessoal, e cumpre um conjunto
de indicadores de desempenho e qualidade definidos. Sob esse esquema, o número
de ônibus ou a distância percorrida é definido no contrato de concessão, mas a
rota real atendida pelo operador pode mudar ao longo do tempo, de acordo com a
orientação da autoridade de trânsito, para acomodar as mudanças nas
circunstâncias. Os sistemas BRT em Bogotá (Colômbia) e
Uberlândia (Brasil) trabalham com esse modelo de alocação.
No entanto, nesse modelo, as operadoras têm um incentivo para aumentar o número de ônibus e os quilômetros percorridos
para receber uma receita maior, gerando um excesso de oferta. Para resolver
esse problema, a autoridade deve realizar uma maior supervisão sobre a
programação do serviço e identificar possíveis descompassos entre demanda e
oferta. Esse controle e monitoramento podem ser feitos de forma mais eficiente
em cidades menores ou em componentes específicos do sistema de transportes (por
exemplo, sistema de troncos). Algumas cidades que adotaram o modelo de frota
estão atualmente mudando-o para uma alocação por área.
Por Área
Nesse modelo, um operador é responsável por fornecer serviço em uma área geográfica predefinida que inclui várias rotas. O
desenho das rotas e o processo de planejamento da operação podem ser realizados
pela autoridade ou pela concessionária. Esse conjunto de rotas pode ser
otimizado posteriormente pelo operador ou pela autoridade de trânsito para
atender às mudanças na demanda ou para obter maior eficiência operacional.
Além disso, para cidades em crescimento e mais dinâmicas, esse modelo
pode proporcionar maior flexibilidade para atender às necessidades em constante
mudança da cidade. Ele reconhece as diferenças nas necessidades da área
(comportamento da demanda, condições de infraestrutura, etc.) e permite a
criação de condições locais específicas que garantam o equilíbrio
do negócio ao sistema e a cada operador de área. A operação de ônibus de Bogotá é baseada em concessões por corredores e
alimentadores para as linhas de BRT e concessões que cobrem áreas dos serviços
zonais, dividindo a cidade em 13 zonas. Estocolmo também
utiliza esses tipos de alocação, onde as concessionárias são responsáveis por
projetar rotas e planejar operações dentro de suas áreas alocadas.
Critérios para comparar modelos de alocação
Com base nos resultados dos estudos de caso analisados, foi definida uma
série de parâmetros a serem considerados ao decidir qual modelo de alocação
melhor se adapta a cada cidade. Esses parâmetros são:
- Nível de intervenção da
autoridade de transportes.
- Flexibilidade para
modificar rotas (ajuste de abastecimento).
- Economias de escala.
- Envolvimento da autoridade
na operação do sistema.
- Integração com outros
sistemas de transporte.
- Mudança de um sistema de transporte existente para um desejado.
Funções e responsabilidades da autoridade e dos operadores
O planejamento técnico da rede de transporte é
fundamental para garantir um sistema eficiente e a entrega de um serviço de boa
qualidade. É, no entanto, um processo intensivo em recursos que exige capacidades técnicas avançadas e recursos financeiros,
e seus resultados podem ser difíceis de aplicar. Esse planejamento inclui a
definição de rotas, o despacho de ônibus, o monitoramento e avaliação
constantes, a alocação de recursos atribuindo motoristas a veículos e veículos
a rotas, bem como a otimização de quilômetros vazios. Além disso, as empresas
operadoras são encarregadas da aquisição, financiamento e manutenção de
veículos, depósitos e abrigos. Essas funções são atribuídas aos operadores
porque suas empresas são fortes, com alta capacidade técnica, vasta experiência
internacional e a força financeira necessária para grandes investimentos.
Em Estocolmo, por exemplo, embora os operadores privados tenham a maior
parte das responsabilidades operacionais, a Storstockholms Lokaltrafik (SL),
a empresa reguladora que controla os operadores de transporte privados,
continua a ser uma autoridade de transportes forte, capaz de definir, controlar
e supervisionar o cumprimento dos contratos de exploração.
Em contraste, em muitas cidades latino-americanas com capacidade institucional limitada para realizar o
planejamento técnico e fazer cumprir os acordos operacionais, os operadores de
ônibus desempenham essas funções mesmo nos casos em que a lei as atribui
explicitamente às autoridades. Nesses cenários, o principal fator que determina
o planejamento e as operações tende a ser as margens de lucro do operador.
Este sistema, embora não seja perfeito, tem alguns méritos, pois se baseia na
experiência prática dos operadores para algumas funções de planejamento, como a
criação de novas rotas, um processo que é orientado pela demanda e pode até ser
definido por tentativa e erro. No entanto, nessas cidades, a frequência, a
confiabilidade e a qualidade do serviço são tipicamente ruins.
Os papéis da autoridade e dos operadores do sistema de transporte de uma
cidade devem, em última análise, garantir que os objetivos e necessidades de
todas as partes interessadas envolvidas sejam atendidos e sustentados ao longo
do tempo. Crucialmente, deve-se considerar qual divisão de papéis e
responsabilidades é viável, dado o contexto local e as capacidades técnicas das
autoridades e operadores. Como e o que delegar a cada parte deve ser
cuidadosamente considerado, levando em conta a situação política, econômica e
social da cidade, e deve ser explicitamente definido nos
contratos de concessão.
A transformação dos sistemas de transporte público em economias emergentes é um desafio complexo, mas não intransponível. A implementação de modelos de concessão bem estruturados e adaptados, transparentes e focados na qualidade do transporte público no contexto local é um passo fundamental para superar as ineficiências e deficiências atuais. Ao aprender com as experiências de cidades que alcançaram sucesso na profissionalização e melhoria de seus serviços de ônibus, e ao considerar os oito elementos-chave para o design de concessões, as autoridades podem traçar um caminho claro para um transporte público mais eficiente, seguro e de alta qualidade. O relatório da GGGI serve como um guia valioso nesse processo, fornecendo insights práticos e diretrizes para que os tomadores de decisão possam moldar o futuro da mobilidade urbana.
Qual é o próximo passo para sua cidade na avaliação de um modelo de
concessão de transporte público?
Baixe aqui o Relatório "Análise Comparativa de Modelos de Concessão de Transporte Público de Ônibus".
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