Entre Trilhas e Cicatrizes

 

Foto feita enquanto pedalava na Trilha Sucupira - Ferrovia no dai 27/07/2022

Nas manhãs de Uberlândia, antes que o sol tivesse coragem de romper o frio da madrugada, eu já estava na estrada. Pedalava por trilhas de terra batida, cercado de pastos verdes, árvores dispersas e um céu que, aos poucos, se pintava de tons dourados, lilases e alaranjados. O cheiro da relva molhada, o canto dos pássaros e o silêncio cortado apenas pelo som dos pneus esmagando a terra me faziam sentir inteiro. Ali, eu respirava liberdade. Sentia o vento me atravessar como quem purifica, como quem renova.

Era nesses momentos que eu acreditava na beleza da vida. A simplicidade da paisagem me devolvia um sentido maior, uma conexão com o que é essencial, com aquilo que não se compra, não se vende e não se destrói — ou, pelo menos, não deveria.

Mas, o que eu não sabia, é que mais à frente, fora das trilhas, me aguardava outra estrada — tortuosa, sombria e cruel. Uma estrada pavimentada não com terra, mas com o egoísmo, a ganância e a frieza de uma parte da medicina que deixou de cuidar para apenas lucrar.

Caí nas mãos de profissionais que não me enxergaram como ser humano. Fui visto como um objeto de treino, uma cobaia a serviço da formação deles. Médicos que juraram salvar, mas que preferiram mutilar, rasgar, cortar, errar... e seguir como se as consequências não fizessem morada em corpos como o meu. Tiraram quase tudo de mim. Deixaram-me restos — um pedaço do que fui —, sufocado por dores físicas lancinantes e por uma dor ainda maior, que é invisível, que corrói por dentro: a dor de quem perdeu possibilidades, movimentos, sonhos e pedaços inteiros da própria história.

Vivo à sombra do medo de uma infecção que ronda como abutre, esperando a fragilidade vencer. Às vezes, me pergunto qual dor é maior: a do corpo, que grita a cada movimento, ou a da alma, que chora silenciosa, pela injustiça, pela impotência, pelas mãos que deveriam curar e só me feriram.

Sinto-me, muitas vezes, vegetando, como uma árvore podada demais, que teima em brotar, mesmo quando tudo diz que não. E é nesse quase-silêncio da dor que as memórias me salvam. Quando fecho os olhos, volto àquelas trilhas. Vejo o céu aberto, sinto o cheiro da terra, o vento no rosto. E, por alguns instantes, sou inteiro de novo. Inteiro na lembrança, inteiro na resistência.

É nessa luta interna — entre não me deixar secar por completo e não me afogar em lágrimas que já escorrem secas — que sigo. Com a dor, sim. Com a revolta, também. Mas, sobretudo, com a teimosia de quem sabe que, dentro desse corpo ferido, ainda habita alguém que não foi vencido.

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