Córrego Crispim e os meninos do Gama: memórias de amor, luta e infância nas margens do cerrado

 

Corredeiras do Córrego Cristpim

Há lugares que moldam a alma. Para mim, o Gama foi esse território de descobertas, lutas e sonhos. Cidade satélite do Distrito Federal, seu nome carrega a poesia de um verbo que se confunde com o próprio sentido da vida: amar. Não é à toa que há um dito popular que diz: “Quem ama, mora no Gama.” E essa frase, para aquele menino que cresceu entre o fim dos anos 1970 e início da década de 1980, parecia mais que um bordão — era uma verdade sentida no corpo e na paisagem.

Entre 1972 e 1981, a vida se desenhava ao redor do córrego Crispim, um curso d’água que cortava passa porto da quadra 32 do Setor Leste, perto de onde morávamos. Não havia água encanada em nossa casa, nem nas demais da vizinhança. As mães precisavam levar suas trouxas de roupas até o córrego para lavar — missão árdua que, paradoxalmente, se tornava uma festa para nós, as crianças. Íamos ajudar a carregar as bacias, mas o que nos motivava mesmo era brincar nas corredeiras, escorregando em pedaços de papelão, rindo até perder o fôlego.



Enquanto as roupas recém lavadas secavam sobre a grama verde que bordejava o córrego, nós virávamos exploradores do cerrado ainda preservado. Ali encontrávamos cajus, araticuns, jatobás, pequis, bacuparis, muricis, mangabas e até pitombas, que colhíamos direto do pé. Era um paraíso do cerrado, um santuário silvestre que nutria nossa fome e nossa fantasia.

Éramos pobres, sim. Muitas vezes, não havia carne na mesa durante a semana. E, movidos pela fome e pela inocência cruel da infância, levávamos nossos estilingues para caçar passarinhos. Sem consciência do impacto, os abatíamos para comer, compartilhando entre amigos um pequeno churrasco improvisado à sombra das árvores. Era sobrevivência, mas também era brincadeira.

Nossa vida era dura, mas não nos sentíamos infelizes. Nunca reclamávamos da vida. A miséria não tinha nome para nós. Era apenas o mundo como ele era — e nós, mesmo sem saber, já praticávamos a resiliência. Éramos criativos, otimistas, proativos. Não sabíamos o que era ansiedade ou depressão, talvez porque tínhamos a liberdade do mato, da água, do céu aberto. E tínhamos uns aos outros.

Na semana, o córrego era nosso quintal. No fim de semana, o Parque da Prainha virava ponto de encontro de famílias inteiras. Tinha piscina, lanchonete, espaço para correr e brincar. A cidade se enchia de gente, e aquele espaço ganhava ares de paraíso democrático. Os olhos brilhavam com a simplicidade do sorvete, da água limpa, da companhia.

No entanto, mesmo entre as brincadeiras e a beleza natural, havia um incômodo que crescia silencioso dentro de mim. Eu não entendia por que o poder público deixava tantas comunidades sem água potável ou rede de esgoto. Era inconcebível, mesmo para um menino. Não fazia sentido que mães tivessem que andar quilômetros para lavar roupas. Ou que todos fôssemos obrigados a usar privadas sem fossa, ao lado das casas, em plena capital federal.

Em 1982, algo mudou. Eu já não era criança — e, com as leituras que me transformavam, veio a consciência. Comecei a participar da Associação de Moradores do Setor Leste, ao lado de adultos engajados na luta por saneamento básico. Sonhávamos com o que parecia o mínimo: água potável, rede de esgoto, dignidade.

Lembro de quando meu pai, pedreiro de profissão, começou a construir nossa casa de alvenaria com ajuda dos filhos e de um tio. Éramos onze pessoas na casa: meus pais e nove irmãos. Eram dois quartos, uma cozinha, um banheiro e uma área de serviço. Pequena, mas nossa. Com orgulho, lembro também do dia em que ele cavou e construiu a fossa séptica — uma revolução para quem só conhecia banheiros improvisados.

A vitória veio aos poucos. Primeiro conseguimos a rede de água potável. Depois, a rede de esgoto. E por fim, o asfalto — ainda que de baixa qualidade, o chamado “a frio”. Cada conquista era uma libertação. Cada cano instalado, uma revolução silenciosa. Para nossas mães, era o fim da obrigação de andar até o córrego com bacias pesadas. Para nós, crianças, era o fim de um ciclo de brincadeiras que nunca mais seriam as mesmas.

Ainda hoje, as lembranças daquele tempo evocam uma mistura de nostalgia e admiração pela capacidade humana de transformar dificuldades em momentos de alegria. Naqueles anos, o bairro não contava com água potável encanada, e a rotina de muitas famílias, incluindo a minha, envolvia a árdua tarefa de lavar roupas em locais distantes. Para as mães, era um fardo; para nós, crianças e adolescentes, que as acompanhávamos para ajudar a carregar os feixes de roupa, a jornada ao córrego Crispim era sinônimo de liberdade e diversão.

As corredeiras do Crispim, com suas águas límpidas e as margens adornadas por grama verde, eram um convite irrecusável à brincadeira. Enquanto nossas mães esfregavam e enxaguavam as roupas, que depois seriam estendidas na grama para secar ao sol, nós nos entregávamos à euforia de deslizar pelas corredeiras em pedaços de papelão. Era uma sensação fantástica, um êxtase puro que a simplicidade daquele ato proporcionava. O vento no rosto, a água respingando, o riso solto ecoando pelo vale – tudo contribuía para forjar memórias que o tempo jamais apagaria.

Apesar da alegria, a ausência de saneamento básico era uma questão que, mesmo na inocência da infância, me parecia inconcebível. Não entendia por que o poder público deixava comunidades inteiras desprovidas de água potável e rede de esgoto sanitário. Essa perplexidade inicial, no entanto, seria o embrião de uma consciência que floresceria anos mais tarde.

Mas, antes da conscientização, havia o romance da vida difícil. O córrego Crispim não era apenas um local para lavar roupa; ele abrigava também um parque com piscina e uma lanchonete, um verdadeiro oásis de lazer que fervilhava nos finais de semana. Aos sábados e domingos, o local se enchia de gente buscando um refúgio da rotina, e a energia da multidão contagiava o ambiente. Nos dias de semana, o parque era nosso, um playground particular onde a imaginação corria solta e as corredeiras continuavam a ser o centro das nossas travessuras.

Ainda assim, não deixamos de voltar. Já adolescentes, a turma da quadra 36 do Setor Leste se reunia para reviver os velhos tempos no Parque Prainha. Nadávamos, escorregávamos nas corredeiras, ríamos como se o tempo não tivesse passado. As obrigações cresciam, mas a essência seguia intacta.

Hoje, olhando para trás, sei que aquela infância me ensinou o que significa ser feliz com pouco, ser forte sem saber, ser livre em meio à precariedade. Vivemos com o mínimo, mas tínhamos o máximo que a vida podia oferecer: natureza, laços, brincadeiras, sonhos. E o mais importante: aprendemos, pouco a pouco, a transformar indignação em luta e memória em força.

A cidade do Gama ainda mora em mim. Gosto de lembrar que seu nome se confunde com o verbo amar. E sim, quem ama, mora no Gama. Mas quem viveu ali nos anos 1970 e 1980 carrega o Gama dentro do peito, como um pedaço de céu cerrado, como um riacho de saudades que ainda escorre pelas margens do tempo.

 

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